Atual e perturbador
Novo trabalho do diretor tunisiano Abdellatif Kechiche fala sobre preconceito ao tratar de um circo na França do século 19
Publicado em 03/11/2010 | Cristiano Castilho
“Que nojento”. “Eles apelaram”. “Nossa”. É impossível sair indiferente ao filme Vênus Negra, em cartaz na 34.ª Mostra Internacional de São Paulo. A nova trama de quase três horas de Abdellatif Kechiche (do premiado O Segredo do Grão), volta ao século 19 para recontar a história de Saartjie Baartman, uma negra africana que virou atração em um circo de freak shows na Inglaterra e na França.
A mulher (Yahima Torrès, em estreia impressionante) perdeu seu filho (morto) e seu homem (desaparecido). Aos 20 e poucos anos, foi retirada de seu país para servir de atração bizarra em Londres e em Paris. De características físicas marcantes – o tamanho de seus seios, de suas nádegas e a particular anatomia de seus órgãos genitais –, Saartje “representa” de forma animalizada uma fera nos “palcos”. Acorrentada, urra e ameaça os “espectadores”, que tremem de medo. Serve de cavalo. E todos a tocam, a beliscam porque, dizem, “é bom para a fertilidade feminina”.
O jogo que o diretor propõe ao espectador é individual. Um olhar para seus próprios princípios. Sarah (ela foi batizada assim depois de começar a trabalhar na Europa) não é propriamente uma escrava. Mas está muito longe de ser livre. Sarah fala ao menos três línguas e tem ouvido absoluto. Chama atenção de um violinista erudito, com quem, em uma apresentação, divide o repertório. Mas a sensibilidade intrínseca presente nessa mulher nem um pouco discreta acaba justamente quando ela começa a “atuar”. Sarah se subverte em algo que ela não é. Pelo dinheiro, talvez, daquele “trabalho” que acaba por ser uma diversão aos outros.
Cada “apresentação” é mais dolorosa. Uma delas é uma espécie de orgia não declarada. Seios à mostra, mulheres tocam o corpo portentoso de Sarah. Ao final do show, ela é deitada como se servisse a todos. Então ela chora.
Sarah é tão “representativa” que desperta o interesse da Academia Real de Medicina da França. Por algum punhado de moedas, funcionários a tomam de seu “guarda”. Vão examiná-la, medi-la, decifrá-la, como se fosse um extraterrestre. “Nunca vi uma cabeça humana tão similar à de um macaco”, diz um anatomista.
Mesmo revisitando o início do século 19, o diretor tunisiano Kechiche de certa forma vislumbra o presente. Não é novidade o problema da xenofobia na Europa, principalmente na França. Se antes, como no filme, era mascarada pela relação “artista” – espectador, hoje a situação de preconceito é mais direta, embora também mais combatida. O filme nos transporta há mais de 100 anos atrás para tentar compreender a origem desse discurso incabível.
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