domingo, 8 de novembro de 2009

O EVANGELHO SEGUNDO SÃO MATEUS - Edson Bueno


O EVANGELHO SEGUNDO SÃO MATEUS


Certa vez, quando eu tinha feito um espetáculo, modéstia à parte, sublime, chamado “Vermelho Sangue Amarelo Surdo”, que contava alguma coisa, mas nem tanto, sobre o gênio Van Gogh, um amigo, ex-amigo, colega, ex-colega, companheiro, desafeto, sei lá, cruzou comigo num bar de Curitiba e em altos brados acusou-me de plagiador. Segundo ele eu tinha plagiado as cartas que o belo Van Gogh escrevera para seu irmão Theo. Mas como? Pensei eu, se eu coloquei no programa que o texto era baseado nas tais cartas? Enfim, o cara gritava tanto e eu fiquei tão estarrecido que eu lhe disse, assim, naturalmente, que meu próximo espetáculo seria baseado na Bíblia e que eu resolvera agora, plagiar Deus! Não foi o próximo espetáculo, mas em 2008, aceitei o meu próprio desafio e encarei o Evangelho Segundo São Mateus, para falar, não de Jesus ou de religião, ou de evangelização. Mas para refletir com a platéia sobre a palavra. Aquela que, dita por ele (Jesus), tem o poder de transformar e que, quando vira concretude, se for humana e boa, vale uma existência ou uma profissão. Machado de Assis disse que muitas vezes uma hora de vida, representa uma vida inteira. E eu tenho, às vezes, a sensação de que o tempo em que escrevi e dirigi “O Evangelho Segundo São Mateus” significou o sentimento que eu tenho pela vida e pela arte. É um sentimento utópico, que mora no meu coração, que sei, difícil de experimentar na crueza do dia a dia, mas válido como sensação e espírito. Tento, sinceramente, ser leve diante do cinismo, da competição e da violência das relações sociais e acho que devo, muito, à experiência de montar esse espetáculo, a suavidade que em grande parte do dia, experimento. Não fiquei apenas com São Mateus, mas busquei na poesia de Fernando Pessoa e seu 8º. Poema do Guardador de Rebanhos, o apoio poético para dar mais humanidade, simplicidade e beleza à peça e ainda mais, na relação que os atores vivem com a plateia, que é uma relação de intimidade e (quase) inocência. Ali depositamos, eu e eles, muito do sentido de se fazer teatro. Em certa apresentação um senhor chegou-se no Pazello (um dos atores) e disse de peito estufado: “Esta peça não deveria sair de cartaz enquanto o último curitibano não a tivesse assistido!” E eu que já a assisti tantas vezes e também já a vivi como ator, tenho sempre a sensação de que tudo o quanto eu tenho vontade de falar para o público com a minha arte, o teatro, está contido nela. E que em termos de conteúdo, nada mais preciso dizer. É um sentimento poético e sincero. Um sentimento sobre a vida que se concentra nos versos do Fernando Pessoa (que o Guilherme diz com sublime inocência e o Marcelo também já disse com a mesma beleza teatral), quando ele descreve um instante em que brinca com o seu menino Jesus fugido do céu.

...E perto do anoitecer brincamos as cinco pedrinhas. Sérios. Graves. Como convém a um deus e a um artista. E como se cada pedra fosse todo o universo. E fosse por isso um grande perigo para ela, deixá-la cair no chão. Depois eu conto-lhe histórias das coisas dos homens. E ele sorri, porque tudo é incrível. Ri de quem pensa que é rei e não é. E tem pena de ouvir falar das guerras... e das ilusões... e das competições... e das injustiças... e dos preconceitos... E tem mais... Porque ele sabe que a tudo aquilo falta àquela verdade que uma flor tem ao florescer. ... Depois ele adormece e eu deito-o. Levo-o para dentro de casa e deito-o. Ele dorme dentro da minha alma e às vezes ele acorda à noite e brinca com os meus sonhos. Vira uns de perna para o ar, põe uns em cima dos outros e bate as palmas sozinho, sorrindo para o meu sono.

Pois é. Depois de três temporadas em Curitiba (desde abril de 2008) e algumas viagens mágicas, meu (nosso!) “O Evangelho Segundo São Mateus” re-estreia no Teatro José Maria Santos. Hoje. Às oito da noite. E fica mais um mês em cartaz. Com atores lindos, palavras lindas, emoções sinceras, muito pão, muito café, muito vinho, muita, muita humanidade!

Escrito por Edson Bueno às 01h13

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